Eu tô doido pra fazer vídeos sobre o caso do museu, mas tô adoentado desde que cheguei de viagem. Escrevo isso em um momento em que to o dia inteiro deitado por estar com dores no corpo e a garganta péssima, logo não posso estender tanto quanto queria. Mas o aperto no coração é tão grande que quis registrar mesmo assim.
Um jovem e não-cabeludo Davi, inocentemente pensando que teria uma segunda oportunidade de visitar o Museu Nacional
A única forma de preservar um item arqueológico/paleontológico/histórico e etc. sem perder seu valor é tendo o original. Cópias só serão solução quando tivermos a capacidade de clonar objetos em níveis quânticos – o que não vai acontecer devido ao princípio da incerteza (tema de Física, deixa pra conversarmos ao longo da série de física quântica).
O original nos permite investigar impactos, diferentes composições químicas de cada micro-pedaço da peça, revisitar pra olhar detalhes que se perderam em outras análises, e diversos outros detalhes que se vão no exato instante em que fazemos uma cópia, ainda que não digitalizada.
Como fazer uma medição com espectrômetro de fluorescência de raios x usando essa foto que tirei?
Digitalização você está trocando um item físico por um conjunto de 0s e 1s. Não passa nem perto de ser conservação. Uma foto da Monalisa, ainda que em uma resolução absurda, não guarda informações de relevo, composição, estado do quadro, idade, a camada mais primária do quadro, etc.. Ainda que colocássemos um clone do Da Vinci pra repintar a Monalisa, e por um milagre ele preservasse átomo por átomo o original, você acha que essa réplica perfeita tem o mesmo valor? Em termos de economia de mercado: acha que consegue ser vendida pelo mesmo preço?
Não. O original saiu de uma intenção única, sentimento, visão; o original foi feito em uma sociedade específica, num contexto específico, tocado pelo autor, atravessou séculos pra chegar até aqui. Uso o quadro porque é mais fácil de explicar, mas o mesmo vale pra fósseis, textos, sarcófagos, objetos indígenas, etc..
Esse valor cultural é algo que não aprendemos desde cedo, porque vivemos em uma sociedade onde tudo é prático e visa o melhor lucro. E itens que quebram a lei de mercado confundem (uma das primeiras coisas que você aprende em economia é que oferta-demanda NÃO FUNCIONA PRA TUDO. Há itens que tem maior demanda com preço mais alto, há itens que mantém a demanda independente do preço, etc.. Mas aí é um buraco fundo demais pros economistas de facebook).
Preguiça gigante e outros fósseis. Me arrependo de, à época, não gostar de estar em fotos. Não tenho quase nenhuma comigo no frame. Mas também não imaginava que seríamos capazes de simplesmente queimar o acervo.
Não é por acidente que museus tem menos visitas que shoppings e cinemas. É consequência de desde cedo aprendermos que se divertir é gastar, que a felicidade mora na próxima compra. Derivar entretenimento de atividades como contemplar fósseis, arte, itens históricos, não é economicamente viável.
É fácil produzir uma TV em massa, mas é impossível produzir obras de arte em massa, fósseis em massa, textos históricos únicos em massa, itens manufaturados por um povo pouco conhecido há dez mil anos em massa.
E daí você entende também porque no Brasil não valorizamos ciência, educação, cultura e outras áreas do conhecimento. Não é acidente que este seja o oitavo ou nono (perdi a conta) incêndio em um prédio de valor cultural imensurável por aqui.
É parte do nosso projeto de sociedade.
Nascemos e crescemos pra ser mão de obra e fonte de consumo. O bem estar e o desenvolvimento cultural e emocional dos cidadãos e da sociedade não é bandeira eleitoral forte. Aprendemos que uma economia forte é a solução pra tudo, ignorando que uma economia pode ser forte com graus insuperáveis de desigualdade social.
E isso não é só questão de direita ou esquerda, há países com governos nos dois lados do espectro que funcionam de forma semelhante. A diferença é só onde a renda se concentra mais.
Por isso é quase impossível explicar o tamanho do que perdemos com o incêndio do Museu Nacional pra alguém que não se interessa por isso. É difícil também explicar que os cortes atuais em orçamentos relacionados estão agora plantando os incêndios que vão acontecer em 2025, 2030, 2040.
Pensamos de forma pragmática e utilitarista, então achamos que tudo só tem consequências imediatas. “Apertou o orçamento? Tira da educação! Recupera quando voltar a ter dinheiro.”
NÃO RECUPERA.
Essa visão pragmática é IRRESPONSÁVEL. O pragmático é incapaz de enxergar dez palmos à frente do seu nariz. Acha que se o problema atual for resolvido, tá tudo bem. Ignora as consequências de longo prazo na hora de escolher suas soluções.
E como trocamos representantes de 4 em 4 anos, é melhor manter a população com a visão pragmática e não priorizar áreas que precisam de cuidado de longo prazo. Construir uma ponte é mais rápido e visível do que restaurar um museu – e dá mais votos. Só daria menos votos se a população votante compreendesse a importância do que tem no museu e valorizasse isso mais do que uma ponte que vai facilitar a rota pro trabalho ou pro novo centro comercial. O mesmo vale pra questões ambientais. O aquecimento global é mais uma tragédia plantada e regada atualmente e há décadas, que já estamos começando a colher.
Mas ainda priorizamos indicadores econômicos à humanidade – ainda que nem sempre os indicadores econômicos em questão favoreçam a população.
E aí estamos nós, divulgadores científicos, professores, artistas, cientistas, filósofos, pesquisadores, etc. nadando contra a corrente, porque tentamos ensinar o valor do que não é valorizado e praticar um trabalho que não é prioritário nessa sociedade.
Desanima. Muito.
Isso não é lei da natureza. É estrutura social – o que talvez torne a dinâmica ainda mais forte e impeditiva do que uma lei da natureza. Leis da natureza contornamos com a tecnologia, paradigmas culturais e estruturas sociais são quase impossíveis de contornar e modificar.
Não é à toa que cursos de humanas e sociais sejam rotulados no Brasil de doutrinadores e miçangas: é PROPOSITAL. Porque é de lá que surgem os questionamentos a esse sistema.
“- mas Davi,o que fazer então?”
Ah, vejo que você já foi pragmatizado com sucesso. Parte dessa estrutura depende dessa incapacidade de contemplar um problema por mais de uma hora sem tirar de trás da orelha uma solução prática e rápida.
Eu não sei o que fazer. Já penso nisso há anos.
O que faço é conversar a respeito, fazer meus vídeos com todo o carinho do mundo antes de liberar pra internet, questionar a vida que levo e os valores da nossa sociedade, do meu grupo de amigos, do meu círculo social, da minha família. Tento viver uma vida coerente com o que penso e nunca deixar de questionar essa vida ou o que penso – bem como as estruturas e ideias que vejo ao meu redor.
O que eu não faço é fingir que esses incêndios são mero acidente do destino, fingir que nossos representantes atuais – sejam quem forem – são inocentes e não estão plantando mais tragédias pro futuro; que só um partido ou outro tem culpa ou que um político específico é um herói imaculado.
E, principalmente, eu não me iludo achando que tenho todas as respostas na manga. Isso ajuda se você quer compreender a gravidade real dos nossos problemas, as amplas implicações com nossa forma de resolvê-los e o tamanho imensurável da perda do Museu Nacional.
10 milhões de reais não vão resolver agora. 10 trilhões de reais NÃO VÃO RESOLVER AGORA. Quinhentos trilhões! Não vão resolver.
Precisávamos ter cuidado no passado, bem antes da tragédia. Não cuidamos. Da mesma forma que não estamos cuidando de outros agora – por falta de vontade política, não por falta de pesquisadores que queiram fazê-lo.
No passado também tivemos prioridades orçamentárias que impossibilitavam cuidar disso. Hoje continuamos tendo políticos falando de crescer o bolo econômico e depois dividirmos. Essa é uma jornada sem chegada. Estaremos sempre precisando melhorar mais a economia antes de poder olhar pra cultura, pra pesquisa de base, pra educação. Nunca vamos ter verba suficiente pra poder finalmente começar a investir naquilo que não cabe dentro desse projeto de sociedade – porque o problema mora exatamente no fato de que esse projeto de sociedade não é compatível com essas coisas.
O que não nos ensinam é que nem tudo pode ser resolvido jogando dinheiro no problema.
A tristeza, em forma de escombros.
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