Numa democracia representativa ao modelo do nosso país, a ideia é que as eleições sejam um período de analisarmos as pessoas que se dispõe a exercer um cargo público de forma a conciliar os interesses de toda a população representada. Se essa pessoa já esteve exercendo esse papel por um período anterior e nós julgarmos que ela o exerceu bem, é também uma oportunidade de mantê-la neste exercício. Se não, é a chance de optarmos por outras que acreditemos que possam fazer um trabalho melhor.
Diferente do que as pessoas repetem em tantas e tantas eleições, uma líder eleita não representa apenas seus eleitores. Ela representa o povo inteiro que está sob seu mandato. Isso significa quem quer que ocupe a cadeira da presidência deverá, por força de lei, atender aos interesses de todas as parcelas da população – independente de esta parcela ser a maioria ou a minoria.
Estamos acostumados a pensar que “democracia é a vontade da maioria” devido ao fato de que nosso sistema eleitoral funciona dessa forma (quem tem a maioria dos votos vence). Mas democracia não é isso. Democracia é o governo do povo, e existe exatamente para que os interesses das diferentes parcelas da população sejam conciliados.
Nessa disputa de interesses, há aqueles que tem mais dinheiro para fazer seus interesses se sobreporem aos dos outros, há aqueles que tem um número grande e coeso de pessoas para fazer pressão suficiente sobre os outros de forma a garantir seus interesses atendidos (legalmente ou não), há aqueles que tem cargos estratégicos que os possibilitam garantir o interesse de seus aliados; e, em meio a tudo isso, há aqueles que não tem influência, dinheiro, maioria coesa, cargos estratégicos e outras vantagens, e acabam por não ter força por si só para fazer seus interesses serem considerados pelo restante.
Ainda mais: há aqueles que, por sua sub-representação ou falta de representantes influentes e em cargos estratégicos, acabam por ter negados a si direitos básicos que são garantias de berço para pessoas pertencentes a outros grupos.
É acima de tudo para estas pessoas que a democracia existe. São estas pessoas que chamamos de “minorias”, e não porque sejam um número menor. Da mesma forma que “rolou uma química” se refere a um fenômeno humano e não aos elementos químicos, aqui também a confusão de palavras acaba por gerar imensos abismos nos diálogos sobre política. As minorias são esses grupos de pessoas que tem seus interesses e até seus direitos básicos infringidos por outros grupos da população, apenas porque estes outros grupos tem entre si pessoas com mais dinheiro, influência, cargos estratégicos ou outros instrumentos de força política e social.
Logo, quem quer que ocupe o cargo da presidência do nosso país, tem por obrigação legal representar estes grupos. Entenda bem isso: quem se eleger, se não queremos uma ditadura, deverá governar defendendo os interesses dos pobres, dos homossexuais, dos indígenas, dos negros, das mulheres, dos trabalhadores. Qualquer promessa que inclua deixar estes grupos à margem é anti-democrática, já que a democracia existe acima de tudo para eles.
Deverá governar também sinalizando positivamente para empresários, empregadores, indústrias e outros, especialmente tendo em vista que nosso país passa por um período de crises – econômica, institucional, política.
Nossa crise não vem apenas de dinheiro mal administrado, mas também do sentimento de que não estamos sendo representados por aquelas pessoas que optamos por colocar responsáveis por administrar nosso dinheiro, promover leis que conciliem os interesses dos diversos grupos da nossa sociedade, mediar relações trabalhistas, administrar espaços públicos de saúde, educação e ciência, discernir prioridades orçamentárias tendo em vista o momento presente e também o futuro de nosso país, entre tantos outros papéis que cabem a estes.
Em uma democracia estável, como já ocorre em diversos países (não o nosso), a população não se importa de colocar um pouco mais de dinheiro no cofre pertencente à toda a população se ela nota que este dinheiro está sendo aplicado em uma qualidade de vida melhor para as pessoas desse povo. Os conflitos sociais e índices de criminalidade diminuem quando os grupos pertencentes a essa população tem seus direitos e interesses diversos representados em forma de lei a ser cumprida por todos. Quando o sentimento de desigualdade social se esvai, todos os outros conflitos tendem a ser resolvidos de forma mais conciliadora e todos os recursos passam a ser utilizados em prol de todas as diferentes parcelas da população.
Não é nosso caso. Tudo que descrevi nesse texto é quase um outro idioma se olharmos como nós temos enxergado a classe política e como nós temos enxergado a democracia.
Passamos por um período de uma crise intensa na democracia, que está levando a um confrontamento cada vez mais agressivo entre os diferentes grupos sociais; vemos uma clara re-marginalização de minorias através da tentativa de impedir os avanços a seu favor e também da tentativa de lançar novas leis que removam o que já foi conquistado. Essa re-marginalização não surge de um preconceito nato, mas de uma estratégia política de eleger bodes expiatórios que sirvam pra explicar “os problemas do país”.
E isso funciona. Quando os representantes elegem e apontam bodes expiatórios, a população volta sua atenção e sua raiva contra outra parcela da população – ao invés de voltar essa atenção para eles. Através do discurso “a culpa é deles, ó!”, a população briga entre si e esquece que a classe política não existe para liderar nosso grupo social contra o grupo social ou ideológico dos outros, mas sim que a obrigação legal deles é administrar de forma responsável nosso dinheiro, fazer cumprir a constituição e aprimorá-la quando necessário, respeitar o equilíbrio entre os três poderes, fazer leis que conciliem os interesses da população e, acima de tudo, criar dispositivos legais e jurídicos ainda mais específicos quando uma parcela desta população estiver com seus direitos negados e, como é hoje o caso das populações indígenas, com sua existência ameaçada.
A instabilidade da nossa democracia hoje é melhor representada quando uma parcela da população acredita que uma intervenção militar resolveria o problema, ignorando que os militares servem ao presidente eleito. Intervenção militar é o que está acontecendo no Rio de Janeiro e está só exponencializando mais o problema de violência. Militares não são anjos puros enviados pra Terra em corpos incorruptíveis; são apenas mais uma parcela da população, com seus interesses e papéis, cuja obrigação legítima é defender o país em caso de ameaça bélica externa, não agir dentro do país como uma arma de guerra do líder do executivo contra uma parcela da população.
Nossa democracia está tão deturpada que estamos confortáveis com o genocídio de populações indígenas, e o justificamos como um elemento inevitável do “processo de civilização”, ao invés de nos lembrarmos que são uma parcela da população com sua identidade própria, a quem os governantes deveriam privilegiar.
Chegamos a um ponto onde, na eleição que vem a seguir, parece que se apagou por completo da memória da população que esta é a hora de olharmos a mentalidade e o histórico de atuação das pessoas que se dispõe a exercer os cargos e pensar se elas tem responsabilidade e capacidade de ter em mãos este poder e governar de uma forma que vise toda a população.
A visão atual é que eleição é o momento de idolatrar um político e mostrar ao mundo inteiro como ele é lindo e maravilhoso, como ele é a solução para todos os problemas do universo e todos deveriam se curvar a ele.
E isso é extremamente perigoso para a democracia. Porque essa visão sobre um representante o torna imune à democracia em si. Deixamos de exigir coerência e responsabilidade daqueles que ocupam os cargos que serviriam para visar a conciliação dos diversos grupos da população e passamos a justificar qualquer ação destes representantes, trocando a busca do entendimento e resolução de conflitos pela busca de culpados em meio à população e intensificação dos conflitos sociais.
Hoje me encontro pensando em que representante escolher não mais tendo como critério qual destes representantes considero o mais preparado para o cargo, mas pensando em qual destes pode ser um fator de re-estabilização de nossa frágil democracia.
E este dilema pode parecer um sentimento de outra galáxia pra quem tem um “político do coração” ou um “herói da pátria”.
– “Como assim você tem “dúvidas” sobre em quem votar? É tão evidente e óbvio que X é a solução pros problemas da nação!”
Lamento profundamente por vivermos este período de polarização.
Lamento profundamente que os cargos do legislativo (senadores e deputados) estejam mais uma vez sendo completamente ofuscados, mesmo estes representantes ocupando as cadeiras mais poderosas do país.
Lamento profundamente que tenhamos chegado em um ponto onde não mais conversamos sobre os prós e contras de cada possível candidato ao exercício de cada cargo – cargos estes que existem para conciliar a população inteira -, mas ao invés disso estejamos precisando nos movimentar desesperadamente para que essa democracia não se torne ainda mais uma ditadura das maiorias.
Independente de quem vença, o período que vivemos precisa ser um lembrete a todos de que a democracia não é uma estrutura sagrada e inabalável.
Direito à educação, direito à saúde, direito à vida, direito à liberdade de expressão, direito de ir e vir, direito de ser tratado como inocente até prova em contrário… essas coisas fazem parte do que chamamos de Direitos Humanos. Infelizmente líderes políticos conseguiram com sucesso deturpar esse nome na cabeça de uma parcela grande da população, mas quando exigimos saúde, educação, justiça, liberdade de expressão e tantas outras coisas, estamos nos apoiando nos Direitos Humanos.
E esses direitos e tantas outras “garantias constitucionais” não são garantias reais se não lutarmos pessoalmente em nossa vida cotidiana pra que eles sejam sempre cumpridos e, principalmente, defendidos por estas pessoas que colocamos em cargos de liderança.
É muito fácil esquecer que tudo isso foi conquistado com luta e encharcado com o sangue de inocentes quando por décadas você recebe essas garantias de presente. A sensação geral que se estabelece no inconsciente coletivo é que esses direitos estão escritos nas estrelas e nada pode tirá-los; basta relaxar e curtir a viagem. Mas a realidade não é assim.
É possível perder o direito à vida. É possível perder o direito à liberdade de expressão. É possível perder o direito à saúde, à educação.
É possível uma democracia se tornar tão instável que a população passe a achar que o problema mora na democracia em si por dar voz àqueles grupos que foram pintados como bodes expiatórios, e não naqueles líderes que não respeitam os princípios mais básicos dessa estrutura. Já aconteceu no mundo inteiro; já aconteceu no Brasil; está acontecendo com vizinhos nossos e agora, novamente, com nosso país.
Já estamos tão anestesiados sobre isso que várias vezes presenciei a discussão “é melhor perder a democracia pra ideologia X do que pra ideologia Y”.
NÃO! O melhor é não perdermos a democracia.
O melhor é que essa democracia seja representada por pessoas que compreendam que seu papel é conciliar os interesses da população e trabalhar para o entendimento e respeito entre todos os grupos dela, e não jogar a população numa rinha enquanto fortalecem seu poder e favorecem seu financiadores em detrimento de grupos marginalizados.
Não nos esqueçamos disso nos anos que vem a seguir, independente de quem vença.
Cabe a nós trabalhar para alterar a visão histérica e polarizada sobre o que é exercer a política e cidadania, mirando em uma visão onde o embate de ideias e o contraditório sejam a fundamentação pela qual discutimos política.
Cabe a nós trabalhar ativamente para que as pessoas deixem de acreditar em “heróis da nação” e passem a ver líderes políticos como seres humanos e cidadãos como nós, e passem também a vigiar e exigir constantemente competência e responsabilidade destes quando o colocarmos para exercer cargos públicos.
Enfim, não nos esqueçamos que não vai acontecer da noite pro dia; que cabe a nós, como cidadãos, trabalhar ativamente para que essa democracia se torne um dia, de fato, representativa.
E não nos esqueçamos também que temos responsabilidade pelas consequências quando optamos pela inação – e inação não significa não ter um político ou partido de estimação, mas sim tratar questões sociais como “problema dos outros”.
Nossos direitos não estão escritos nas estruturas mais fundamentais da natureza e a democracia não está escrita nas estrelas; a sociedade não “evolui” naturalmente para um lugar melhor pra todos se nós não dedicamos suor e sangue para isso.
Que não nos esqueçamos disso se a cadeira do presidente for ocupada por alguém que consideramos um perigo para a democracia; e que não nos sintamos aliviados e de missão cumprida caso essa cadeira seja ocupada por outra pessoa.
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