“Quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você.”
Nietzsche, em Além do Bem e do Mal
O aforismo de Nietzsche sobre encarar abismos mostra como o tempo passa e o ser humano continua o mesmo em muitos aspectos.
Com a onda de exageros e extremismos por parte de algumas linhas ideológicas, o que ganha voz é a ideia de que o único combate eficaz é o extremo contrário. Um exemplo simples (e que imagino que vá me dar dor de cabeça) é a página Aventuras na Justiça Social (Facebook), que eu e boa parte das pessoas que conheço curtem/curtiam também.
A princípio eu entendi que o propósito claro da página era ironizar os exageros por parte das análises sociais rasas feitas por grupos de feministas e outros movimentos de minorias – e não estou ditando os propósitos da página, isso é o que havia sido explicitado em textos postados por moderadores na página. Com o passar do tempo, a linha da razoabilidade foi se estreitando cada vez mais, e nos últimos tempos frequentemente vi a desigualdade e a injustiça social (reais) simplesmente sendo instrumento de zombaria, em postagens que dariam orgulho a conservadores de carteirinha – que inclusive compõe boa parcela dos comentaristas nos posts. Seria mentira dizer que isso é um reflexo de tudo que a página posta, até porque eu uso Facebook muito pouco para saber o teor geral das postagens, e esse tipo de post pode ser mais exceção que regra por lá. Porém a mera existência desse tipo de postagem, em qualquer proporção, já é preocupante quando se considera o que a princípio seria o propósito da página.
Mas essa página é apenas um exemplo e este não é um post especificamente sobre ela. Inclusive ela é apenas um entre muitos exemplos de páginas, vlogs e pessoas que eu acompanho e admiro há muito tempo que tem gradualmente escorregado de sua crítica inicialmente genuína para um negacionismo cada vez mais claro a respeito de problemas reais e concretos em nossa sociedade.
O que de fato estou querendo alertar é o risco que corremos quando deixamos que o exagero por parte de um discurso extremista nos leve a sumariamente desconsiderar quaisquer outras análises, estatísticas e evidências que apontem que talvez haja algo de concreto enterrado sob os exageros desse discurso.
Sim, você pode invocar aqui o efeito mola e dizer que a culpa do ódio a uma corrente ideológica é das próprias pessoas que defendem essa ideologia.
Mas não é meu interesse aqui dialogar apenas com suas vísceras, e sim com sua “parte racional”. Se a única forma que você possui para analisar a realidade é a reação impulsiva de defesa, então não se preocupe com esse texto, porque realmente ele será inútil.
Acredito que a repulsa seja uma resposta natural quando nos deparamos com extrapolações desnecessárias a respeito de qualquer assunto, especialmente quando estas incluem acusar você como um algoz, opressor ou criminoso sem que haja nenhuma base realista pra isso. É saudável e necessário apontar também que esse tipo de discurso é prejudicial e irrealista, alimentado muito mais por sentimentalismo do que por uma visão clara a respeito da sociedade.
Medo das estatísticas, ódio a um opressor que foi implantado na ideologia, amor a uma causa justa, enfim, sentimentos honestos e que são muito úteis para nos motivar a agir, porém que podem se tornar uma imensa barreira na hora de compreendermos os obstáculos concretos para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária e de pensarmos os caminhos realmente possíveis para transpormos esses obstáculos – e assim passarmos da mera falsa dicotomia heróis vs vilões sociais para uma realidade que seja melhor para todos.
Porém tudo isso vale igualmente quando a resposta a esse sentimentalismo em um discurso é o sentimentalismo com o discurso contrário. Pior ainda quando este vem com aparência de racionalidade, o que torna ainda mais difícil notar que estamos passando de críticos a cínicos, negacionistas da realidade em que vivemos. Confesso que este último é um processo com o qual eu luto constantemente, pela dificuldade que se apresenta a quem quer compreender nossa sociedade sem se deixar perder nos discursos de ódio que são tão comuns em nossa era da informação.
Se não houver interesse algum por uma sociedade que seja de fato melhor para todos que vivem nela, realmente não faz sentido que haja uma preocupação nesse sentido. Mas se esse existe, então é preciso percebermos que a melhor resposta nunca é o mero descrédito completo de toda uma causa por conta dos discursos inflamados.
O que vejo acontecendo hoje, cada vez com mais frequência, é uma tentativa de apagar o incêndio com gasolina, numa briga de discursos que acaba por considerar irrelevantes as pessoas que sofrem de fato na sociedade com os problemas discutidos nesses discursos. Na briga sobre a existência ou inexistência da cultura de estupro, pouquíssimas pessoas se lembram do sofrimento das vítimas de estupro, da delicadeza deste assunto, da realidade de mulheres que passaram por isso e tiveram que lidar com o trauma sofrido, muitas vezes sem condições de pagar uma terapia; que tiveram que lidar com a ansiedade de uma fila na delegacia para fazer a denúncia, com toda a terrível realidade envolvida nesse assunto.
No meio das brigas ideológicas, inicia-se uma batalha para defender se o que temos é uma relativização ou cultura, se encostar no ônibus é pior que atacar na rua, se mexer na rua é normal ou abuso, e outros discursos que parecem servir apenas para dessensibilizar os dois lados em relação à situação presente no cotidiano da nossa sociedade. Eu fiquei impressionado de ver que em quase todos os vídeos e textos que li sobre o assunto, um fator que quase nunca esteve presente foi o ser humano que sofreu na situação (falando aqui do recente caso de um estupro coletivo no RJ).
A minha impressão é que o grande interesse atualmente é defender uma ideia apenas pela ideia, sem nenhum interesse sobre como agirmos concretamente para impedir que outras pessoas passem por esses e outros sofrimentos terríveis. E eu nunca fui fã de ideias apenas pelas ideias. Ideias que se desligam da realidade são muito boas pra se fazer livros, filmes, músicas, arte, mas não para ajudar a resolver problemas concretos – não afirmando aqui que a arte não possa ser uma ferramenta poderosa para lidar com esses problemas, apenas que ela não necessariamente precisa ser socialmente engajada.
Se queremos resolver problemas concretos, precisamos ter mais sensibilidade com as pessoas em situações concretas de sofrimento, menos apego ao que pensamos e mais cautela em relação às ideologias que odiamos.
A sociedade é uma bagunça mesmo. Mas fazer mais bagunça é a única forma garantidamente inútil de tentar arrumá-la.
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Especificamente sobre o assunto Cultura de Estupro, postei também eu meu segundo canal este vídeo.
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