A repercussão sobre os temas do ENEM é um espelho de como estamos incapazes hoje de abordar e refletir sobre um tema sem pensar antes em como podemos usá-lo pra desmerecer um movimento ou ideologia que não gostamos.
Ano passado foi a questão do feminismo, e um misto de amor e ódio atravessando o facebook. Esse ano, o tema foi intolerância religiosa, e novamente as rixas se acendendo. No primeiro caso inclusive veio a enxurrada de pessoas falando sobre o ENEM como doutrinação esquerdista. Já conhecemos os casos de quem escreveu em 2015 como quem discute no Facebook, evocando frases de efeito e gritos de guerra, e se indignou com a nota baixa. Em breve veremos o mesmo sobre esse ano (os relatos no facebook já começaram).
E o fato, escondido embaixo das nossas euforias e vieses políticos, cognitivos e ideológicos, é que ambos são apenas assuntos sobre nossa sociedade, cuja reflexão é necessária para cada cidadão e importante para construirmos uma sociedade melhor para todos. Digo mais: são temas com os quais seremos confrontados inevitavelmente em nosso dia a dia de alguma forma, porque estão presentes em nosso cotidiano, queiramos ou não, gostemos ou não. Talvez um dia os direitos dos LGBT seja tema, e virá novamente a fúria contra os justiceiros sociais; ou bullying, ou racismo, etc..
O que tanta gente ignora é que igualdade social, intolerância religiosa, machismo, racismo e tantos outros não são “temas de ativistas”, ou ainda uma agenda política exclusiva da esquerda ou direita. São temas da sociedade. São coisas que acontecem ao nosso redor e estamos nos esquecendo que não possuem bandeiras a priori.
O problema é que já nos posicionamos diante desses assuntos a partir de nosso sentimento a respeito de outros. Não investigamos os fenômenos sociais apontados pelo feminismo pra compreender e nos posicionar, apenas olhamos para o estereótipo da feminista extremista e deixamos que isso seja o argumento que define nossa visão sobre o tema. O mesmo pra todos os outros assuntos presentes na sociedade.
É o equivalente a decidir ser terraplanista porque seu professor de física era um carrasco que dava aulas ruins e provas impossíveis. A existência de maus representantes de uma causa não é argumento suficiente pra recusar sua validade, pra se informar sobre ela, ou ainda para caracterizar como as situações apontadas por essa causa se dão na sociedade.
O problema é que passamos por um momento onde o foco da discussão mora mais no posicionamento político daquele que argumenta do que nas ideias apresentadas. A um ponto tão forte em que até quando deparados com algumas linhas solicitando uma redação sobre um tema da sociedade, a reação de tantas pessoas é ACUSAR A REDAÇÃO de possuir uma agenda política, ou achar que A REDAÇÃO ESTÁ APOIANDO sua visão política, e não compreender que uma redação é um exercício onde você é quem precisa pensar a respeito do assunto e organizar seus argumentos. Ela não tem vida própria ou posicionamento político, ela é a proposta de que você olhe para questões que talvez, por preconceito ou por suas ideologias prévias, você nunca se deu ao trabalho de considerar seriamente e com profundidade.
“Cadê os likes dessa folha em branco pra eu saber se concordo com ela?”
Pensando bem, diante desse sentimento geral onde tudo é um embate político e qualquer discussão sobre a sociedade é um jogo de pôquer onde nosso papel é adivinhar a intenção do outro antes de expor nossa mão, uma redação é a ofensa máxima: uma folha em branco, sem opinião ou argumentos prévios, que te obriga a pensar sobre um tema (goste você desse tema ou não), onde a estrutura argumentativa e a linha de raciocínio apresentada importará mais que a quantidade de sofismas e ofensas por segundo; e, por último, onde clamar “essa é a minha opinião” não te livrará da avaliação objetiva das suas ideias.
No meio dessa maré de ódio, poucas coisas incomodam tanto quanto ser obrigado a revisitar suas próprias visões.
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