Não tenho opinião totalmente formada sobre a campanha da Vogue amputando graficamente Paulo Vilhena e Cléo Pires. Mas, pequenas reflexões.
Vocês acham que a campanha da Vogue teria dado uma repercussão tão grande se fossem apenas deficientes de fato, e não dois atores nacionalmente conhecidos? Precisamos sair um pouco da falsa dicotomia de rotular como elitista toda e qualquer ação antes de sequer considerar todos os aspectos dessa.
Não me levem a mal, representatividade é importantíssima! Não estou negando isso. Numa sociedade saudável, seria natural que em todas as revistas, mídias e locais a diversidade prevalecesse naturalmente, sem que fosse chocante ou necessário exigir participação de um grupo ou outro. Numa sociedade que de fato respeita a diversidade, esta seria notada em todos os âmbitos e ações afirmativas seriam desnecessárias. Infelizmente, ainda não é o caso do Brasil.
Confesso que eu estranhei muito quando vi a campanha pela primeira vez, e meu primeiro impulso foi pensar que é um absurdo preferir photoshopar atores conhecidos do que fotografar modelos deficientes. Mas não sou capaz de condená-la. Em alguns momentos, é mais eficaz evidenciar à sociedade seus preconceitos usando de estratégias que não necessariamente visem a representatividade, mas a mudança de mentalidade.
Um dos problemas do preconceito é exatamente o fato de que as pessoas não enxergam determinado grupo como tão capaz, digno e humano quanto seu próprio grupo. E pra alguém que assiste novelas (oitenta? noventa? por cento da população brasileira) é chocante ver esses dois artistas, conhecidos e queridos por essa população, com uma deficiência física. É inesperado, causa espanto, chama a atenção. É só por isso que a campanha fez tanto barulho.
Não podemos invocar blackface toda vez que um ator representar um grupo do qual não faz parte. São casos diferentes, e isso é uma simplificação que não só é imprecisa como também diminui os movimentos civis históricos. A representação aqui não visa combater a representatividade, zombar do grupo em questão ou ainda substituir profissionais igualmente capazes que pertençam a esse grupo. A iniciativa aqui é colocar o rosto de figuras já conhecidas neste lugar pra provocar impacto e gerar uma discussão que ainda é necessária.
Aliás, a quem só criticou mas não foi investigar um pouco, atletas paralímpicos também participaram dessa mesma campanha, junto com os dois. E uma foto sensual da Cléo Pires com o atleta paralímpico Renato Leite em um sofá é uma forma de mostrar essa igualdade a quem não a enxerga. É um jeito de mostrar que uma deficiência física não separa (ou melhor, não deveria separar) um ser humano do restante da sociedade.
Se fossem dois modelos desconhecidos na mesma situação, provavelmente ninguém estaria se importando. Se o ensaio fosse apenas com os modelos deficientes, idem. Então é de se pensar se realmente a campanha não tem algo a dizer. E independente de qual seja sua opinião sobre a revista e a corporação por trás dela, não há porque culpar os atores, que deram rosto à campanha pra aumentar a visibilidade dos jogos paralímpicos (não acostumei com esse nome ainda), e que inclusive foram apoiados por atletas e pelo comitê – já que a própria Cléo Pires é embaixadora dos jogos, assim como Ronaldinho Gaúcho e outros famosos que já tem visibilidade e podem ajudar a melhorar a venda de ingressos, que tem sido baixa desde o começo.
Precisamos nos preocupar sim com representatividade, mas precisamos tomar todo o cuidado do mundo pra que isso não se torne um discurso de “iguais, mas separados“.
Por último, o mais importante: é CLARO que qualquer revista e mídia que de fato se importe com a causa deve repensar seus critérios de recrutamento. O mesmo pra empregadores e recrutadores em qualquer situação. A mesma coisa pra todos nós quando o assunto é a forma como enxergamos e tratamos qualquer pessoa diferente de nós em qualquer aspecto.
Será maravilhoso o dia em que não precisarmos de campanhas mostrando às pessoas que deficientes não são alienígenas, mas pessoas de carne e osso, com qualidades e defeitos, capacidades e dificuldades próprias assim como todo mundo. O mesmo pra tantos outros grupos que ainda enfrentam dificuldades de conseguir emprego, relacionamentos e oportunidades por conta de mentalidades retrógradas e desumanas presentes em nossa sociedade.
Mas até lá, creio que precisamos ser um pouco menos raivosos com campanhas que tentem colocar o dedo nessas feridas, ainda que eventualmente façam isso de uma forma esquisita e até sem noção. Às vezes andar tropeçando é melhor que continuar parado – como muitos de nossos avós, que soltavam pérolas terríveis ao tentar explicar que não se importavam com a cor da pele das pessoas. Talvez não se expressassem da melhor forma, e talvez até precisassem trabalhar um pouco mais a própria mentalidade; ainda assim, estavam do lado certo da história.
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